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Dilce

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Era certo. Todo dia santo, de festejo ou de descanso, a senhorinha da cidade grande visitava a senhorinha sertaneja. Não que a senhorinha da cidade grande não tenha sido um dia uma senhorinha sertaneja. Mas aquela senhorinha sertaneja fora uma vida inteira apenas senhorinha sertaneja. Dali, do pé do alto, Dilce nunca saíra para nada mais distante do que uma milha. Era o rumo de ida e volta da bodega onde comprava alguma coisa que o roçado não lhe rendia. E Tereza, a senhorinha da cidade grande, se espantava com tamanha vontade da amiga de se enraizar. De ser bêradêra, como se referia a quem morava às margens das estradas. Porque ela, Tereza, deixou de ser uma. Floresceu cedo. Ainda menina. Trocou os caminzim de terra, as beiras de estrada, pelo mundo. O mundo todo. “E o mundo todo é muito canto e muita gente”. Sempre dizia isso ao filho mais companheiro. Sempre dizia isso a Dilce. Sempre dizia isso a si mesma. Para não se esquecer-se. Para sonhar sempre. Porque sonhos ...

en.xer.gar

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olha para o espelho e não se enxerga. está ali, mas não se vê. não é cega. apenas reconhece outra pessoa. o reflexo é qualquer uma, menos ela própria. e quase sempre recebe a graça de "uma senhora". "aquela senhora." aponta e sorri. tenta contato, às vezes. só às vezes. não sabe quem é. somente que "aquela senhora" está sempre bonita. sempre simpática. sempre agradável. e sempre olhando pra ela. "a gente tem que falar baixo, que é pra ela não escutar". o pedido vem acompanhado de um sorriso moleque. assim segue no retrovisor do carro. "aquela senhora está olhando pra gente." no elevador. "o vestido dela é tão chique." no porta-maquiagem. "tão jeitosinha, né, ela?". no quarto, após o banho. "eu conheço essa senhora de algum canto; só não lembro d'aonde." há hora em que lembrar é a mais desimportante das coisas. não deixar morrer a memória é que é o importante. e as memórias mais ...

tudo tão.

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orgulha-se da capacidade de falar dos sentimentos sem melindre.  é assim desde a meninice. e tornou-se mais disso após a partida precoce de um amor igualmente precoce. a despedida já tem quatro anos. o orgulho tende a ser imortal. pelo menos enquanto durar. ou permitirem durar. porque durar, permanecer, tem sido cada vez mais difícil. tudo é tão falado - e ao mesmo tempo tão omitido. tudo é tão disfarçado. tudo é tão instantâneo. tudo é tão efêmero. tudo é tão. (tão que quase sempre é nada) tão orgulhoso de falar dos sentimentos, ouviu dia desses, numa conversa dentro de um carro parado num estacionamento de universidade, ser hora de parar. foi um ex-amor (à época, ainda amor) quem pediu. dessa vez, um amor nada precoce. porque falar dos sentimentos é criar um problema. ou vários, se preferir. é dar peso às coisas. é deitar uma palavra num canto que não existe. é exigir de quem nem sempre pode ou quer ou tem a oferecer. porque sim: às vezes, não há o que se ofere...

O sorriso.

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Aquela foi uma segunda-feira para não esquecer. O dia começando cedo, as batidas na porta, o pedido angustiado de ajuda e a cuidadora com o dedo apontado pra uma perna ensanguentada de uma mulher de 95 anos. A limpeza da ferida com soro, o melindre na retirada da pele, o sangue sendo aparado e o curativo feito. O semblante de uma mulher exausta, a fraqueza até para abrir os olhos, a inércia para se alimentar e uma seringa usada para jogar água, por pouco que fosse, garganta adentro. O chamado da ambulância, os minutos de uma espera aflita, o malabarismo de levar da cama à maca, a entrada no veículo e a pressa para não perder a luz vermelha de vista. O sinal furado, a alta velocidade, o estacionamento de qualquer jeito e a corrida para alcançar o desembarque. O toque na mão enrugada, a promessa de "a senhora vai ser medicada pra ficar boa e voltar pra casa", o sorriso amarelo em resposta e o riso debochado da médica ao receber o prontuário do socorrista. A revolta solidária ...

A filha da esperança.

Dona Valda é aquele tipo de senhora que o tempo parece ter amiudado. Os anos passam e ela fica menor de tamanho. Dizem que um dia, se tivermos a sorte de a velhice nos chegar, isso acometerá a todos nós. Crescer para diminuir. Mas dona Valda tem uma razão além do tempo. Sacolas. Sempre duas. Enormes. Cheias de coisas. Uma em cada mão. Pra lá e pra cá. E um sorriso tão vistoso quanto os cabelos brancos presos por um lápis preto. Dois passinhos, um "olá". Mais dois passinhos, um "oi, meu fi". Outros dois passinhos, um "tudo bom, minha fia?". Mais dois passinhos, um "bom dia, como vai você?". Até dona Valda alcançar quem lhe compre mercadorias. Até as tais sacolas esvaziarem. É sempre começo de mês quando ela entra nas salas e gabinetes de um certo palácio onde não há príncipes, princesas, reis ou rainhas. Entre uma investida e outra, o descanso numa cadeira de corredor. Uma aguinha. E, se alguém a notá-la e oferecer, um cafezinho. Quase nunca...

A escolha.

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O ritual acontece toda noite. A mão mais nova segura a mais velha. Conduz da cadeira de balanço, na sala, por um corredor cheio de quadros até o quarto. Um cômodo à direita decorado com mobília escura da primeira metade do século passado. É sempre depois das 21 horas quando isso acontece. É quando o olho começa a pesar, coisa de 30 minutos após a ingestão do último comprimido do dia. O azulzinho. Aquele que ajuda no sono. Fitoterápico. Aí, as luzes são acesas. E o que acontece em seguida se assemelha a um balé. A senhorinha senta na ponta da cama, abaixa a cabeça, o jovem lhe tira um prendedor preto com coloridos e um laço numa das extremidades, e ela deita. Ele estende a coberta. Seja pelo balanço natural do arremesso ou pela lufada do ventilador, o tecido pousa imitando uma folha caída de uma árvore gigante. E se molda direitinho, como se fosse missionado para isso, ao corpo da senhorinha. Não encerra aí. A mão mais nova agora volta da cozinha, escura que nem os céus de cidad...