Dilce

Era certo. Todo dia santo, de festejo ou de descanso, a senhorinha da cidade grande visitava a senhorinha sertaneja. Não que a senhorinha da cidade grande não tenha sido um dia uma senhorinha sertaneja. Mas aquela senhorinha sertaneja fora uma vida inteira apenas senhorinha sertaneja.

Dali, do pé do alto, Dilce nunca saíra para nada mais distante do que uma milha. Era o rumo de ida e volta da bodega onde comprava alguma coisa que o roçado não lhe rendia. E Tereza, a senhorinha da cidade grande, se espantava com tamanha vontade da amiga de se enraizar. De ser bêradêra, como se referia a quem morava às margens das estradas.

Porque ela, Tereza, deixou de ser uma. Floresceu cedo. Ainda menina. Trocou os caminzim de terra, as beiras de estrada, pelo mundo. O mundo todo. “E o mundo todo é muito canto e muita gente”. Sempre dizia isso ao filho mais companheiro. Sempre dizia isso a Dilce. Sempre dizia isso a si mesma.

Para não se esquecer-se.
Para sonhar sempre.
Porque sonhos são filhos da esperança.
Aprendera isso cedo.

Era chegar ao pé do alto, bater palma e a senhorinha sertaneja aparecer. Feliz da vida numa casa miúda. Os peitos só não eram mais avantajados do que o sorriso ao receber uma amiga quase gêmea. Nascida no mesmo mês. No mesmo ano. Diferença de dias.

A alegria de Dilce chegava primeiro do que a própria Dilce.

O café, preto e amargo, as lembranças, as gargalhadas, Fransquim, o marido de Dilce, as torradas, os carinhos, os esquecimentos, as repetições, os carões na cachorra teimosa, mais café e o pedido de sempre. “Vá passar uns dias lá em casa, comadre. Os meninos lhe levam pra praia.”

“Vá ver o mar.”

Mais certo do que o café ou a teimosia de Cabeça, a cachorra, era essa súplica de Tereza. E a desconversa de Dilce para evitar o não a amiga, desta vez transformado em sim.

“Pois eu vou.”
Arrumou as malas.

As senhorinhas iriam, enfim, desbravar oceano. O sertão de Dilce viraria mar dali a algumas horas. Deixaria de caber numa tela plana do aparelho de televisão antigo da sala de chão batido para morar dentro dela, Dilce. Um mundo de água correndo na senhorinha sertaneja.

“Meu velho uma vez conheceu. O mar. Mas faz muitos anos! Disse que era a coisa mais medonha do mundo de grande. Quase a maior que ele já viu. Porque a maior mesmo era o amor dele por mim”. À época, uma declaração desajeitada sob um céu de tijolos. Dele para ela. Agora, a caminho da cidade, uma confissão para o céu. Dela para ela. Para o mundo.

Tereza ouviu o sussurro. Marejou, silenciou e emendou a remexer um baú de memórias. Falou dos queijos vendidos nas varandas, das borboletas aparecidas nos bons invernos, dos esconderijos em sacos de arroz, das festas desacontecidas, das festas acontecidas com tocadores, da espionagem da vida no horizonte do terreiro e de como a infância tinha um gosto de saudade do futuro.

Tudo para o trajeto encurtar.

O primeiro descobrimento foi pelo cheiro. Dilce sentiu a maresia de longe. A vista sequer alcançava o verde da água quando o oceano lhe tomou os pulmões. Depois os olhos e, por fim, banharia pés e mãos.

Foi da cabeça de um alto em plena cidade grade, longe do pé do alto sertanejo, que a senhorinha percebeu como a definição de Fransquim, o marido, sobre o mar fora tão fiel quanto o amor dos dois.

Era uma imensidão medonha.
“Cabe é o céu todim ali dentro, meu Deus”, sentenciou.
E ficou muda diante do espanto.

Pisou na areia. O mar namorou o pé de Dilce de um jeito impossível de ela não lembrar do companheiro, deixado lá no sertão. Parecia Fransquim lhe beijando a mão enquanto pedia em casamento décadas atrás.

Fechou os olhos, cheirou a água e pensou no neto mais novo. Naquele momento, ela mais lembrava uma menina do que uma mulher no fim da vida. Imaginou Marcel lhe dizendo “vovó, não dá pra desenhar o céu todo numa folha só de cartolina” em meio a um trabalho da escola. Se Dilce tivesse estudado e fosse aquela uma atividade, seria a vez dela de dizer: “não dá pra colocar o mar todo numa folha só de cartolina, professora.”

Acordou com um afago da amiga.
A mão macia lhe tamborilando os ombros.

- Da parte do mundo que conheço, esse é meu lugar preferido – disse Tereza.
- Isso é tão grande que eu me sinto quase nada – respondeu Dilce.
- O mar é desse tamanho, comadre, pra mostrar pra gente como cada gota é importante para ele ser gigante, porque sem umazinha que seja ele é menor, e pra gente perceber como, justamente por isso, cada gota é enorme, porque de uma em uma, e somente assim, o mar se torna tantos e tão imenso. – acrescentou a senhorinha da cidade grande.

A senhorinha sertaneja pensou a respeito.
Lembrou de algo que viu na televisão e disse:

- São vários, né? O mar...
- Ele é que nem a gente, comadre: na inteireza, um só; na sobrevivência, tantos quantos forem necessários. Vai ver por isso o Fransquim se declarou tão bonito pra ti, sobre o amor dele ser maior do que o mar. Pra ele, conhecer o mar foi que nem sentir o amor de vocês pela primeira vez.

E Dilce de novo calou.
Levantou instantes depois.
Juntou o que havia ao redor e saiu.
Atravessou o restante do dia para dentro de si.
Tornou a falar somente no amanhecer seguinte, prestes a voltar para o pé do alto.
Foi quando deu sua primeira negativa a Tereza.

- Volto ali mais não, comadre. O mar, pra mim, bastou uma vez. Essa vez.

A senhorinha sertaneja voltou vazia de si e cheia de saudade.
Saudosa do amor do marido, hoje presente só na fotografia da sala.

Já na porta de casa, Dilce despediu-se da amiga com uma dor quase poética. Pensava que aceitar o convite para conhecer grandes águas a faria sentir o grande amor da vida ainda mais pra dentro.

Foi justo o contrário.

“Ele me disse que o amor dele por mim era maior do que o mar. Pois agora eu sei que o vazio dele na nossa casa é ainda maior, comadre. Cabe o mar todim no espaço que ele deixou na minha vida.”

Sair do pé do alto, da fotografia pregada na parede da sala, a única lembrança física de Fransquim, fora o mesmo que o deixar. A bem dizer um abandono. Uma desistência do eterno. Um fracasso até da saudade.

E a saudade é um jeito de o amor permanecer.
Pode ser até tão imensa quanto o mar.

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