A escolha.
Aí, as luzes são acesas. E o que acontece em seguida se assemelha a um balé. A senhorinha senta na ponta da cama, abaixa a cabeça, o jovem lhe tira um prendedor preto com coloridos e um laço numa das extremidades, e ela deita. Ele estende a coberta. Seja pelo balanço natural do arremesso ou pela lufada do ventilador, o tecido pousa imitando uma folha caída de uma árvore gigante. E se molda direitinho, como se fosse missionado para isso, ao corpo da senhorinha.
Não encerra aí. A mão mais nova agora volta da cozinha, escura que nem os céus de cidade do interior quando não há estrela à vista, festa de São João ou queima do boneco do Judas. Carrega agora um pequeno frasco vindo da geladeira. Pinga uma gota fria em cada olho da mulher. Fundamental para ela ver o mundo. Mas só ver mesmo, porque enxergar, um dos verbos mais difíceis já inventados, ela consegue de outra forma. Sem colírios.
E continua. O jovem deixa novamente o breu do compartimento ao lado, para onde devolveu o frasco. Aciona o dispositivo de iluminação noturno, oferece garantias à senhorinha, recebe bênçãos em troca e retribui com um beijo na testa. Ela solta um estalo no ar enquanto ele arma a rede onde irá dormir. Toda noite é uma vigília cheia de rompantes. Que começa com um mergulho dos dois na escuridão.
É quando o balé acaba. A cortina é o preto da noite. O palco é a própria vida. Mas acaba – justa e temporariamente, pois volta no dia seguinte - para permitir que pensamentos vivam na cabeça do rapaz. Efeito colateral do silêncio depois de um dia preenchido por ruídos de toda natureza.
A cabeça da senhorinha descansa enquanto fervilha no juízo dele o quanto esse ritual importa. Restaura. Porque o empurra para um terreno mais alto, de onde ele pode enxergar (e não apenas ver) tanta coisa. Tantos sentidos que, noutra perspectiva, não fariam sentido. Sequer seriam sentidos.
Ele vive uma velhice que não a dele. Pobre rapaz, pode alguém pensar. Pobre de quem não vive isso, ele diria em resposta. Atravessar a velhice de alguém sendo ainda um menino e ao lado desse alguém é sentir o tempo correr contra quem se quer eterno. É se dar conta de que o medo que se sente da morte – a instituição morte - é muito menos por si e muito mais pelos outros. É pela solidão. É pelo esquecimento. Morrer é ser esquecido.
Testemunhar alguém definhando é perceber que dias continuarão amanhecendo e anoitecendo mesmo depois do fim dessa pessoa. Mesmo depois do meu fim, reconhece o rapaz. A gente não quer que o outro morra não só pelo amor envolvido. A gente torce contra a morte numa tentativa de não ter que esbarrar na implacável constatação de que, afinal, o fim é sim solitário. E egoísta.
Egoísta porque a padaria vai abrir normalmente no dia depois da tal morte. A coleta de lixo vai ser feita da mesma forma. O jornal vai estar cedinho na banca. Mais uma democracia vai ser golpeada. O cachorro do vizinho ainda vai ser insuportavelmente inconveniente. Congestionamentos continuarão sendo o método mais eficaz de desperdício de vida do ser humano. Tudo permanecerá perfeitamente igual.
A gente teme tanto a morte é por saber que o mundo não vai parar porque a gente morreu. Nem um segundinho sequer. Nem se alterar em nada significante. Pode até abalar drasticamente o mundo de alguém. Mas o mundo do resto do mundo? Não. Isso não. Nosso mundo é miúdo demais para afetar tantos mundos assim. Essa função é historicamente dos meteoros.
O jovem que ajuda a avó vive uma velhice que não a dele e sente todo esse turbilhão. Um horror, né? Bom, aí depende do que cada um faz com as experiências. Ele, por exemplo, prefere perceber nisso uma ponte para um futuro – o próprio futuro – mais sensato e racional. Precoce, até. Que seja. Se a ele só foi possível presenciar o tempo correndo contra a avó, e todas as variáveis boas e ruins disso, o que o faria não enxergar o tempo lhe correndo a favor, ainda a favor, mesmo que hipoteticamente?
Claro que o tempo corre contra todos. Mas a gente também relativiza isso o quanto pode. Questão de imaturidade, até certo ponto. E sanidade também, depois disso, por que não? Contar demais o quanto o tempo corre faz a gente perder esse mesmo tempo quando não há tempo a perder. Ninguém tem tempo a perder. Pode até querer, mas não tem. Porque o tempo é o fator da velhice mais dono de si, por mais que seja nosso. Na verdade, ele só nos representa.
Viver a velhice da avó, no fim das contas, é um meio encontrado por sabe-se lá quem para ensinar ao jovem algo que, sabe-se lá o porquê, ele não teria com quem mais testemunhar. A não ser quando a própria velhice chegasse. Se chegasse. Com sorte, todos chegaremos nela.
Não se trata de aceitar as coisas como elas se apresentam. Nem de não querer lutar para outros filhos e netos terem as mesmas obrigações com a senhorinha. Muito menos é viver num mundo onde tudo está perfeitamente encaixado. É somente a opção de investir energia em algo que significa alguma coisa. Que tenha consequência boa. Que se edifique.
A velhice, especialmente a dos outros, tende a ser vista como um fardo. Um problema. Ou vários problemas. Quando alguém de fato a enxerga (e não apenas a vê, de forma simplória e anatômica), tudo muda. Para melhor. Vira horizonte. Envelhecer – seja na própria velhice ou pela velhice dos outros – é aprender a enxergar horizontes.
O jovem escolheu isso.
E você, o que prefere?
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