A filha da esperança.

Dona Valda é aquele tipo de senhora que o tempo parece ter amiudado. Os anos passam e ela fica menor de tamanho. Dizem que um dia, se tivermos a sorte de a velhice nos chegar, isso acometerá a todos nós. Crescer para diminuir. Mas dona Valda tem uma razão além do tempo.

Sacolas.

Sempre duas. Enormes. Cheias de coisas. Uma em cada mão. Pra lá e pra cá. E um sorriso tão vistoso quanto os cabelos brancos presos por um lápis preto. Dois passinhos, um "olá". Mais dois passinhos, um "oi, meu fi". Outros dois passinhos, um "tudo bom, minha fia?". Mais dois passinhos, um "bom dia, como vai você?". Até dona Valda alcançar quem lhe compre mercadorias. Até as tais sacolas esvaziarem.

É sempre começo de mês quando ela entra nas salas e gabinetes de um certo palácio onde não há príncipes, princesas, reis ou rainhas. Entre uma investida e outra, o descanso numa cadeira de corredor. Uma aguinha. E, se alguém a notá-la e oferecer, um cafezinho. Quase nunca um riso em resposta. A frieza do palácio não permite.

Na verdade, as sacolas de dona Valda são cheias de sonhos. A velhice não lhe tomou os desejos de assalto. Só dificultou um pouco mais os cotidianos, especialmente por serem eles cheios de solidão. A aposentadoria rareia antes de o mês findar quase sempre. Mas quem compra dela panos de prato, caminhos de mesa, calções e camisas da moda e todo um mundo escondido naquelas sacolas nem imagina isso.

A julgar pelo sorriso, o mundo de dona Valda é perfeição.

Mas o que ela recebe de volta após uma vida inteira de lida mal cobre os gastos das exigências da velhice. Os olhinhos comprimidos porque decidiu dar mais uma risada, porém, não deixam de ser assim. Dona Valda não se queixa. De nada. Já assimilou que é carregar as quinquilharias pra tudo o que é canto em vista de vendê-las ou passar aperto. É muitas vezes submeter-se a buscar essas mercadorias a 400 quilômetros de distância, sacolejando numa carona com um amigo de um vizinho, ou não ter o que oferecer à clientela. E não ter muito à escolha na dispensa.

Passa dias e dias perambulando. Mas não reclama. Os pés às vezes incham. Mas não reclama. Está sempre de conjuntinho preto. Só a sandália japonesa é branca. Para combinar com os cabelos, acredito. Mas não reclama. Tem refeições simples. Mas não reclama. Vai e volta de ônibus (e com sacolas). Mas não reclama. Pouco recebe ajuda na rua. Mas não reclama. Ouve desaforos da mulher do restaurante por pedir para comer fiado. Mas não reclama. Silencia, abaixa a cabeça, limpa o prato, consegue alguém que lhe banque e vai embora desejando "tudo de bom" à garçonete. Um desejo sincero. Sem deboches.

Atravessar o tempo é sabedoria.
Muita gente, a maioria de nós, só passa por ele.

Quando crescer, e não falta muito para isso, sonho ser que nem dona Valda. Amiudar carregando sacolas cheias de sonhos para tempos áridos de existência. Porque sonhos, afinal, são filhos da esperança.

Mesmo sem carregar no nome o significado de "mulher forte", como é Valda, quero poder parar e dizer "seja feliz" a um jovem que me trate com carinho, como dona Valda faz. Quero nunca perder o viço. Quero sempre pensar que terei mais tempo. Nunca que já acabou.

O melhor produto de dona Valda está fora das duas sacolas que ela carrega por onde vai. Ela o oferece - e aí não tem dinheiro que compre - quando ergue a cabeça e sorri a quem lhe cruza o caminho. Muitas vezes, o sorriso dela é o melhor abraço que muitos vão receber em dias.

E nem vão se dar conta.

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