O sorriso.
Aquela foi uma segunda-feira para não esquecer. O dia começando cedo, as batidas na porta, o pedido angustiado de ajuda e a cuidadora com o dedo apontado pra uma perna ensanguentada de uma mulher de 95 anos. A limpeza da ferida com soro, o melindre na retirada da pele, o sangue sendo aparado e o curativo feito. O semblante de uma mulher exausta, a fraqueza até para abrir os olhos, a inércia para se alimentar e uma seringa usada para jogar água, por pouco que fosse, garganta adentro. O chamado da ambulância, os minutos de uma espera aflita, o malabarismo de levar da cama à maca, a entrada no veículo e a pressa para não perder a luz vermelha de vista. O sinal furado, a alta velocidade, o estacionamento de qualquer jeito e a corrida para alcançar o desembarque. O toque na mão enrugada, a promessa de "a senhora vai ser medicada pra ficar boa e voltar pra casa", o sorriso amarelo em resposta e o riso debochado da médica ao receber o prontuário do socorrista. A revolta solidária do estranho, o olhar assustado da enfermeira, o pedido de calma e o atendimento imediato. O portão de ferro abrindo, a porta da UTI escancarando, um leito sendo criado e as duas mãos em despedida. O aguardo. Uma hora, duas horas, um almoço, três horas, quatro horas, um café, cinco horas depois, o chamado. Uma médica de semblante delicado, um corredor amarelo, o espanto ao informe de estar só, o relato burocrático, o pedido para não haver rodeios e o diagnóstico. O "tome o tempo que precisar", o "fale o que quiser falar pra ela", o "converse porque ela pode reagir", a reação, o reencontro das mãos, uma só com força para apertar como de costume e a volta pro quadro dito no corredor amarelo. A confissão. "Não se preocupe comigo". A continuação após os soluços. "Pode ir em paz". O quase fim da fala. "Eu vou ficar bem". Por fim, o fim. "Vou ser feliz como a senhora mandou". A saída do leito, o desamparo na área externa, o ato de sentar na varanda do hospital, o choro e a conversa de uma família ao lado feliz por ter salvo um dos seus. A inveja, o desejo de um milagre, as lágrimas enxugadas, a respiração forte e o retorno para casa. A madrugada longa, a saudade já se mostrando mais longa ainda, a falta de notícias, as visitas chegando, o abraço no sono e o dia misteriosamente nascendo. O café amargo, a comida sem gosto, a falta de motivo para um simples "bom dia", a nova ida ao hospital. A entrada na UTI, os pertences recolhidos, as duas mãos se encontrando novamente, a delicadeza do toque, mais palavras bonitas pronunciadas e a olhadela que seria a última para a mulher de 95 anos e corpo franzino. A chegada ao trabalho, as duas primeiras coisas despachadas, o telefonema às 14h22min e a tentativa de amenizar a notícia. A morte propriamente dita, o choro descontrolado, o abandono do serviço, a chegada em casa, o mistério de ter força para sustentar quem está mais fraco do que você e o despacho das burocracias hospitalares. O necrotério, os quatro corpos estendidos "na pedra", um caixão de madeira no canto da parece e sua tia num dos bancos. Tufos de algodão nas narinas, a boca selada, os olhos em descanso e um esparadrapo gigante no peito. Maria Alice Sampaio de Castro escrito à caneta. Azul. O carro funerário branco, o velório, o amparo do amor de quem ficou e a recusa à despedida definitiva.
Tudo assim, num único fôlego. Vinte e quatro horas que pareceram durar um mês inteiro e fazem parte de uma memória ruim de uma criatura boa. De alguém pertencente a uma categoria de pessoa na qual poucas se encaixam: as ingênuas. Que pecam por serem tão inocentes. Mas que invariavelmente estão certas quando falam. São profetas do sonho, da esperança, do que faz bem.
Sempre que refaço esse caminho da manhã de segunda-feira ao adeus no cemitério - e acredite, quando você perder alguém pra morte vai refazer o seu caminho -, me pego pensando se estou sendo tudo aquilo o que minha tia pediu que eu fosse. Um homem bom. Ajudar sempre que possível. E quando for impossível também. Não sonegar "eu te amo". Não se envergonhar de não saber. Não ter medo de se desculpar. Não não falar. Sempre se respeitar. Sempre sonhar. Sempre se ver grande.
Lições que ela me dava todo dia em vida, que eu percebia, claro, que eu praticava, ou tentava, mas que ganharam um significado ainda maior depois da partida (para mim, precoce).
Quando o dia acaba e eu deito para dormir, o porta-joias está no criado-mudo. Toda noite olho pra ele. Abro com frequência e encontro fotos, um relógio de pulso prateado, um cordão também de prata, um terço vermelho trazido do Vaticano e um par de brincos. Duas bailarinas.
Elas estão reproduzidas no meu braço direito. Miudinhas. Em tamanho natural. Para sempre que eu olhar lembrar de todos os tais ensinamentos, especialmente de um que ela dizia adorar em mim.
O sorriso.
Tudo assim, num único fôlego. Vinte e quatro horas que pareceram durar um mês inteiro e fazem parte de uma memória ruim de uma criatura boa. De alguém pertencente a uma categoria de pessoa na qual poucas se encaixam: as ingênuas. Que pecam por serem tão inocentes. Mas que invariavelmente estão certas quando falam. São profetas do sonho, da esperança, do que faz bem.
Sempre que refaço esse caminho da manhã de segunda-feira ao adeus no cemitério - e acredite, quando você perder alguém pra morte vai refazer o seu caminho -, me pego pensando se estou sendo tudo aquilo o que minha tia pediu que eu fosse. Um homem bom. Ajudar sempre que possível. E quando for impossível também. Não sonegar "eu te amo". Não se envergonhar de não saber. Não ter medo de se desculpar. Não não falar. Sempre se respeitar. Sempre sonhar. Sempre se ver grande.
Lições que ela me dava todo dia em vida, que eu percebia, claro, que eu praticava, ou tentava, mas que ganharam um significado ainda maior depois da partida (para mim, precoce).
Quando o dia acaba e eu deito para dormir, o porta-joias está no criado-mudo. Toda noite olho pra ele. Abro com frequência e encontro fotos, um relógio de pulso prateado, um cordão também de prata, um terço vermelho trazido do Vaticano e um par de brincos. Duas bailarinas.
Elas estão reproduzidas no meu braço direito. Miudinhas. Em tamanho natural. Para sempre que eu olhar lembrar de todos os tais ensinamentos, especialmente de um que ela dizia adorar em mim.
O sorriso.
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